sábado, 7 de dezembro de 2013

La vie d'Adèle - chapitre 1 & 2 (2013) de Abdellatif Kechiche


Emma gosta de ostras. Adèle gosta de esparguete à bolonhesa. Os dados estão lançados: será possível uma vida a dois entre estas duas pessoas? Resistirá o amor ao apetite devorador de Adèle, ao seu gosto pela pele (assume, aliás, a Emma que nunca a deixa no prato), à sua atracção pelos fios (sempre invisivelmente azuis?) do esparguete à bolonhesa? Resistirá o amor à degustação mais "experimentada" de Emma, que não gosta de comer a pele da carne (carne que de modo algum recusa), que prefere engolir, num só movimento, o muco ranhoso das ostras?

Este amor terá de enfrentar o conflito gastronómico que é sempre um conflito sexual: a pele é a única coisa que interessa à câmara de Kechiche, sobretudo a pele do rosto e, porque a carne nunca fica no prato, tudo o que ele gera. A imagem-afecção está nas lágrimas, no ranho, nos cabelos despenteados, na boca que saboreia a bolonhesa, que chupa a ostra, que sacia o desejo pela carne e pela pele. (E o pathos sentimental estará numa explosão de lágrimas, numa explosão de ranho, numa explosão de desejo…)

Uma boca - a de Adèle é um monumento de expressividade, aliás, o rosto de Adèle é todo um décor de que não quereremos sair ou é ele que não sai de nós - que deseja amar e ama desejar outra boca (o sol une-as!), mesmo que nesta a degustação da bolonhesa não se faça tão bem como a ostra. Emma e a sua pele doce e o seu cabelo de esparguete. Adèle e as suas lágrimas e ranho e… frescura de ostra. Antes da união, da mudança de capítulos, cada uma provará um pouco de si pensando que prova um pouco da outra: Adèle as ostras de Emma e Emma o esparguete de Adèle. Mas já no início viramos quem tem o apetite mais descontrolado: Adèle lambe a faca, não deixando escapar o último fio de esparguete disponível. O seu apetite é descontrolado, mas, porque a faca pode ferir, também é auto-destrutivo. No jardim, antes de se beijarem pela primeira vez, Adèle gaba-se da sua capacidade para "comer de tudo"… menos, lá está, marisco. Emma diz que o seu prato favorito é ostras e daqui surgirá a única analogia gastronómico-sexual mais ou menos flagrante de todo o filme.

O filme de Kechiche é a história da vida de Adèle, mais concretamente, da vida do seu rosto, da adolescência à entrada na idade adulta. O rosto como lugar de mudança e o plano fílmico como topografia do rosto. Durante o filme, nós seguimos o rosto; depois do filme, é o rosto poderosamente belo, intoxicantemente jovem de Adèle que não cessa de nos percorrer. Com efeito, a câmara não renuncia a nenhum poro de Adèle, o seu apetite pela pele e pela boca (e faltará falar dos dentes…) é tão intenso que será impossível que cada gesto banal, quotidiano, não ganhe uma dimensão quase metafísica (até porque, como já disse, o sol une-as!). Nada há de mais humano que as cenas com comida, o mesmo diria sobre as cenas de sexo, mas as duas - e o poder da vida, como do cinema, também é esse - equivalem-se como partes de uma mesma e sublime ementa.

Como diz Adèle em entrevista, este é um filme sobre o acto de comer: "eu como, e eu como-a". Sabemos da importância que a comida tem no cinema de Kechiche - veja-se ou reveja-se "O Segredo de um Cuscuz" - e também já sabíamos como a sua câmara é táctil  - veja-se ou reveja-se "A Esquiva". "A Vida de Adèle" reduz estes "apetites" de Kechiche a uma relação triangular entre dois rostos e uma câmara (e não é ela aqui, sem voyeurismos, o lugar do nosso rosto?). A Palma de Ouro dada ao realizador e às duas actrizes faz, por isso, total sentido, ou não estaríamos aqui, ao contrário dos outros filmes do realizador franco-tunisino, na presença de uma fulgurante co-autoria. Tudo gira à volta dos gestos e dos seus efeitos no rosto de Adèle e é nele que enforma uma mise en scène feita de desejo, decepção e dor. Entenda-se o alcance deste gesto: a mise en scène é engendrada pelo rosto-cineasta de Adèle, não o contrário.

O que se cozinha aqui é o amor em todas as suas etapas. A discriminação está tanto no sexo como nos ingredientes: no limite, deverá uma pessoa que gosta de ostras juntar-se a uma pessoa que gosta de esparguete à bolonhesa? A pior propaganda queer fica definitivamente fora do prato (isto é, fora de campo), porque o amor (= o apetite de amar) não escolhe cores ou géneros, mas apenas ingredientes. Para mais, como todos sabemos, o apetite humano é, por natureza, muito variado e variável. Aqui, por exemplo, Adèle decide "engolir" a paixoneta heterossexual com um chocolate. Numa sequência como esta, vemos Adèle a saborear de boca vazia o rosto de Emma. Adèle deseja Emma como se a quisesse de facto devorar, roubando à faca, com a língua, cada um dos seus últimos fios azuis. Pelo menos em 2013 - e que o leitor aponte isto -, o amor serve-se quente como a bolonhesa e vivo como a ostra.

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