quinta-feira, 25 de abril de 2013

Antíphon (2012) de Peter Kubelka


Para Peter Kubelka, a essência do cinema não é a imagem, mas a projecção da imagem. Como disse em 2005, alertando para os perigos da revolução digital, "It is the most catastrophic error of film conservators. The contents do not exist! No one has ever physically touched the content of films. The content cannot be dissociated from the material on which it is registered and, if one transfers the film on another support, one thus loses the content!". Em 1964, portanto, 41 anos antes, nas páginas da Film Culture, Kubelka participava com Jonas Mekas na análise "fotograma a fotograma" da sua própria obra para concluir: "Cinema is not movement. (...) Cinema is a projection of stills - which means images which do not move - in a very quick rhythm". Antes de chegar a esta formulação ontológica do (seu) cinema, Kubelka marcara uma posição: "Hit the screen - this is really what the frames do. The projected frames hit the screen". Dois conceitos-chave aqui, nestas duas posições separadas por mais de 40 anos: por um lado, projecção, por outro lado, ecrã.

É surpreendente a coerência deste cineasta que trabalha até ao mais infinitesimal reduto do cinema, procurando assim uma espécie de transcendência do mínimo (deleite pela ablação do cinematógrafo) que se faz mais notavelmente numa anulação do cinema pelo cinema, num desaparecimento da imagem e do som a par de uma afirmação cada vez mais palpável e ruidosa do medium. Podemos separar os seus filmes em blocos - filmes metafóricos e filmes métricos, por exemplo - mas o mais notável é a continuidade, a absoluta - regresso à palavra - coerência do trabalho que Kubelka desenvolve sobre a linguagem do medium. A sua obra começa com "Mosaik in vertrauen", uma interessante variação do estilo Free Cinema, antecipando já alguns "truques" da Nouvelle Vague, e termina - até ver - em "Antíphon". De um para outro, as mudanças são evidentes, mas quando acompanhados pela projecção do que está "entre" estes dois títulos, percebemos que não há ruptura alguma, mas sim um continuum: a posição política é a mesma, vemos sempre em Kubelka uma vontade de, pedaço a pedaço, ir salvando o cinema de si mesmo, mostrando mesmo que por muito mais que as figuras desapareçam - as de "Mosaik in vertrauen", de "Adebar", de "Dichtung und wahreit" - não só estaremos sempre perante o que se pode chamar de cinema, como na realidade estaremos mais próximos de superar a nossa, tão terrivelmente cristalizada, "ideia de cinema". Quando já não há imagens filmadas e apenas vemos o preto e o branco, apenas ouvimos som/ruído e ausência de som/ruído, estamos enfim a assistir à depuração de todo um programa estético: imagens que "atacam" o ecrã e uma projecção que se torna na verdadeira experiência, antes mesmo das imagens fixas que Kubelka dispara 24 vezes por segundo.

Aliás, esta ideia de "atacar" ou "disparar" está já muito presente na sua impressionante obra-prima de 1966, "Unsere Afrikareise", sátira anti-colonial onde imagem e som são como que urdidos em conjunto para a formulação de uma estrutura discursiva verdadeiramente explosiva. Este discurso documenta com ironia um safari de turistas europeus ao Sudão, alternando as imagens da caçada branca - ouvimos tiros, gargalhadas, vemos languidez e "poses" sobranceiras - com planos de nativos sudaneses auxiliando os estrangeiros na caçada - e sendo "forçados" a estar em pose com eles - ou seguindo naturalmente com a sua vida, à margem da aberrante expedição. São 12 minutos e 30 segundos tão significativos e "letais" quanto boa parte da obra de um Jean Rouch. Posição política que para mim não está tão longe quanto isso desta é aquela que produz a pergunta que é "Arnulf Rainer", de 1960, e, sobretudo, aquela que produz a resposta que é "Antíphon", de hoje, 2012,  52 anos depois. Já sem figuras humanas - nem sequer as silhuetas dançantes de "Adebar" ou os flashes momentâneos de vida de "Schwechater" - ou sons identificáveis, estamos aqui reduzidos a um "nada de cinema" que na realidade nos devolve, poderosamente, à experiência de estarmos numa sala, inseridos numa comunidade de espectadores e de estarmos defronte a um ecrã liso.

A resposta durou 52 anos a vir e surge-nos hoje como uma clara afirmação das qualidades mediúnicas do cinema, que neste momento - como o próprio Kubelka afirmara em 2005 - estão num processo radical de reconversão. "Antíphon" acaba por ser uma inusitada apropriação da estrutura discursiva - eminentemente musical ou não teriam algumas pessoas da plateia reagido ao filme como se estivessem num concerto de rock - de "Unsere Afrikareise", na medida em que também aqui Kubelka lida de frente com um problema de colonização, no caso, do sistema analógico pelo digital. Este regresso a "Arnulf Rainer" faz-se então quando a própria dimensão - material e rítmica - da projecção cinematográfica parece já estar em estado de ruína e o próprio cinema de Kubelka na iminência de não passar de um objecto de museu esquecido.

(Os filmes de Kubelka, que juntos duram pouco mais que uma hora, foram projectados numa sessão única, hoje, dia 24 de Abril, na Cinemateca Portuguesa. Alguns destes filmes estão disponíveis em cópias pirateadas, com péssima qualidade. Não recomendo que vejam esta obra no computador - posso comprovar que são "filmes diferentes"...  Sugiro que espere por próximas projecções no local de sempre.)

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