sexta-feira, 6 de julho de 2012

La chambre (1972) de Chantal Akerman


Parece que o título é muito claro e aponta para isto: pequeno filme sobre uma mulher, a própria Akerman, rodeada pelas suas coisas (mais notavelmente, uma chaleira) num pitoresco quarto em Nova Iorque. As cores antecipam a marca do seu cinema - cores que os não conhecedores do cinema da cineasta belga diriam ser "rohmerianas" -, verdes, vermelhos, castanhos-cortiça, tons adormecidos, a tender ora para a escuridão total (sombra) ora para uma claridade incandescente (luz). Parece ser somente isso: inventário de coisas e inventário de/para uma pessoa, sofisticado auto-retrato da cineasta no quarto, na cidade, no país onde decidiu viver durante um ano (onde, aliás, aprendeu a métier indo beber aos cinemas de Mekas, Snow, Warhol, Brakhage, entre outros). Sofisticado pelo tal trabalho sobre a cor, mas, antes de tudo, repara de imediato o espectador, pelo trabalho de câmara. E é aqui que o título começa a trair o próprio filme.

Subtilmente, a panorâmica vai desenhando um círculo e depois outro e depois outro, um ângulo de 360º que só não perpetua a repetição (da imagem) porque, para lá da natureza morta (a chaleira, a mesa, com os pratos, a cadeira...), há Akerman (o corpo vivente). Mesmo ciente deste movimento de câmara (que dez anos depois, em "Trop tôt, trop tard", Straub e Huillet põem em "funcionamento" lá fora, ao ar livre, para com-preender a paisagem), o espectador poderá continuar a insistir no erro de pensar que o título não engana, que o título é o filme. Pois, a certa altura, com um golpe, ou, usando um termo caro a Jorge Jesus*, num "contra-golpe", a câmara que fazia o ângulo em sentido inverso aos ponteiros do relógio "acerta" para o outro lado, restringindo assim o seu "raio" de acção - como se a partir daquele momento tudo resultasse de uma escolha - e fazendo-se notar não como "um" mas como "o" grande efeito disruptivo/dramático/espectacular deste filme. O grande (e)feito digno de registo, logo, digno de todo um filme. Akerman e a chaleira deixaram de interessar. A "chambre" deixa de ser a "chambre" do quarto e passa a ser a "chambre" da câmara.

O título francês, dual, inexplicável - já que Akerman filma "na América para o mundo" - encerra a premissa "thrillesca": o objecto de desejo não é o que está à frente mas aquele ou aquilo que posiciona e manobra o desejo, ou melhor, aquilo que o enquadra (também não é o quadro!); o objecto (de desejo) é, enfim, o instrumento. "La chambre", isto é, "A câmara" de Akerman.

*- Ele que tem honras de epígrafe, fabulosa epígrafe aliás, a fazer "carga de ombro" sobre Nietzsche ou Leo Ferré, em texto recente do Mário Fernandes (torrencial, colérico, corrosivo, demencial e, contudo, bastante divertido), a ler no último número da revista Foco.

5 comentários:

Álvaro Martins disse...

Nunca vi nada da Akerman... por onde me aconselhas começar?

Luís Mendonça disse...

Precisamente por estes seus primeiros filmes. Podes aproveitar a retrospectiva que vão fazer do seu trabalho no próximo Doc Lisboa, em Setembro.

Álvaro Martins disse...

Lisboa fica-me muito longe e dispendiosa nos dias de hoje, além de não dispor de tempo para tal. Mas certamente irei explorar alguns dos seus filmes aqui pela internet... obrigado ;)

Luís Mendonça disse...

Na próxima newsletter do CINEdrio haverá uma surpresa que te poderá "ajudar" na descoberta da Akerman. Em breve, irei anunciá-la.

Flávio Gonçalves disse...

Vi este há poucas semanas, relembrei-o com o teu texto, que se tornou agora um bom complemento ;)

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