quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Carmelo Bene contra o cinema: excertos de uma entrevista "inaceitável"


Os excertos que publico abaixo - traduzidos muito livremente por mim - dizem respeito a uma entrevista televisiva realizada por Sandro Veronesi em 1995 ao cineasta, actor, encenador, dramaturgo e pensador Carmelo Bene. O seu título, "C.B. versus CINEMA", resume muito bem o espírito desta entrevista que é muito mais um monólogo ou uma ininterrupta deambulação teórica de Bene que o tradicional "frente-a-frente" televisivo.

Por favor, tenham esta publicação não tanto como uma provocação aos leitores do CINEdrio, mas antes disso como uma provocação ao próprio CINEdrio.

Para consultar na íntegra esta entrevista - ou se pretende citá-la num trabalho científico -, recomendo ao leitor a aquisição da edição Raro Video de "Nostra signora dei turchi", a fonte usada para esta transcrição/tradução.

Há cinema que nunca teve cinema... Sempre foi um plebiscito contra o bom gosto, o que era como Nietzsche descrevia o teatro, mas cabia melhor ao cinema, onde as pessoas estão sentadas numa sala escura ou semi-escurecida, durante muito tempo e, incompreensivelmente, um "quadrado" subitamente se ilumina! Se deixassem na escuridão também esse "quadrado"... 

O cinema (...) é uma celebração dos irmãos Lumière. O que resultou do período dos Lumière? (...) Eu penso que a sua comemoração dura desde o século XIX, a mesma que se tem perpetuado. É uma celebração na qual as pessoas vivem falsos encontros, organizados numa espécie de turismo de massas. (...)

(...) Porventura, a única não-história do cinema é aquela de Gilles Deleuze: "Imagem-Tempo" (...), que cita aqui este C.B., daqui em diante ausente, e Antonioni com referência ao corpo. Para dizer que nós "somos" um corpo ao invés de "termos" um corpo. (...) Deleuze pode pôr Carmelo Bene e Antonioni na mesma frase como completos opostos, mas sempre focando no corpo. As personagens, as figuras... Sim, eu chamo-as "figuras", personagens implica sempre uma certa psicologia, não é verdade? (...) Antonioni é um mestre da ironia, talvez... os seus filmes são os únicos filmes cómicos, na minha opinião. Por cómico, não quero dizer "bufo". Schopenhauer distinguiu "bufo" de "cómico". O "bufo" são essas pessoas que vemos na TV. O "cómico" é qualquer coisa muito afiada, como uma espada. É frio e surge subitamente como um veneno (...). Não quero exagerar com estas frases de bolso mas este é o conceito básico.

Para mim, o autor está separado da obra. Ele "é" a obra-prima, ele não pode "produzir" a obra-prima. Esta é a minha atitude no confronto com a imagem (...). Não suporto a representação. Toda a representação é uma representação de Estado. Não suporto a arte, nem mesmo as grandes obras de artistas, como Rafaello... (...) O cinema não é a sétima arte. O cinema não é nada. Com efeito, os festivias de cinema são festivais de entidades híbridas (...). O cinema sempre foi tributário da literatura, da música. Havia um músico que acompanhava os filmes, agora a música está nos filmes. O cinema nunca se "filmou a si". Eu nunca vi um filme na minha vida! Eu digo que para se ver um filme, temos de mergulhar no "Ulisses" de Joyce, talvez. Logo, não é uma questão de ver material filmado, mas ao invés do que se está a passar agora, do imediato. No entanto, está escrito. (...) Depois há a dobragem. A dobragem é uma enésima cópia, isso torna-se numa espécie de pequena masturbação do set pelo set. A obra inteira do Fellini não é mais que uma desastrosa auto-gratificação do set.

Ele não é um grande acrobata nem um grande bombeiro. Para mim, é um cineasta. Assim sendo, não se pode fazer literatura da literatura, música da música, cinema do cinema...  (...) É preciso olhar para fora. Onde está este "fora" no cinema? Onde está a diferença? (...) [O cinema] está demasiado organizado, trabalhado, com guarda-roupa que vence prémios... Existem sempre os prémios. É um cinema "de Óscar": quanto mais ganha, mais cretino é. Mas não cretino em sentido nobre. É um cretino esperto, que quer agir com esperteza. É quase analfabeto. 

O cinema é vulgar, tem códigos muito precisos. Não existe um cinema americano ou italiano. Nos últimos 20 anos, os americanos abusaram de efeitos especiais. O cinema italiano, o realismo com ou sem bicicletas (...), a música, a dobragem, a paisagem... é completamente diferente. 

[O cinema] é um nado morto, com os Lumière. (...) Podemos distinguir um cinema emergente, terceiro-mundista (...), um cinema decadente, um cinema balbuciante, a extravagância. Tudo está ligado a uma linguagem. "O cinema do Burundi é um cinema do Burundi", mas depois não tem nada a ver com o Burundi. Os filmes americanos não têm nada a ver com a América! Alguns dizem: "A arte não deve ter nada a ver com a vida". (...) A vida não tem nada a ver, porque na nossa rotina temo-la compreensível, nós encontramos equilíbrio em qualquer coisa. Eu nunca vi um filme desequilibrado. A primeira coisa que as pessoas dizem é "bem filmado!" O que quer isso dizer: "bem filmado"? Artaud queria adicionar odores aos filmes no cinema. Todo o tipo de cheiros, até os mais fétidos. (...)

Ao cinema é atribuída uma função social. Quando se fala de social estamos sempre numa fossa séptica enorme. Era Schopenhauer que falava em "excremento humano". 

(...) O cinema nasce como uma tentativa imbecil de um restauro... pedido por ninguém. (...) Não se pode restaurar "Ulisses" de Joyce. Tentaram! Mas não se pode; não se pode transferir... Henry James... O charme, a grandeza, o feeling... Para mim, o cinema é uma demolição de imagens, dada a montagem frenética, a repetição. (...) O cinema precisa de ser inaceitável e incompreensível. (...) 

Ninguém trabalha sobre a película. (...) 

Ninguém pensou na importância da "pele" do filme, o verdadeiro corpo, esse corpo que se filma a si, o desmembramento do corpo. Não é preciso nenhuma nostalgia artaudiana pela origem. (...) Em qualquer caso, é preciso trabalhar nos dois lados da câmara, não apenas num dos lados. (...) Se o teatro é um plebiscito contra o bom gosto nietzschiano, o cinema é três vezes pior. (...)

(...) O cinema não tem nada a ver com nada, mas pensa que pode agrupar tudo. Para mais, é plano, com o ecrã ali especado. Não é uma questão de definição... melhor ou pior posta. Nunca fui um cinéfilo, excepto quando era miúdo. Eu fiz filmes para me livrar do cinema. "Nostra signora dei turchi", 1968, no ano mais estúpido na história do excremento humano, enterrava o cinema. 

No cinema, nunca vi nada, sem ser fastio. (...) O cinema nunca questionou o seu valor. (...) Não documenta nada. O século XX foi muito interessante. Ao nível patológico, por exemplo. (...) Eu vi os grandes campos de concentração. Isto é patologia, para lá do conceito de bem e mal. Mas também produziu Joyce, Kafka... (...) Mas onde está a graça no cinema? Onde está a beleza que é mais bela que a beleza, como dizia Schopenhauer sobre a música de Bellini? Não vejo.

Eu não vejo nenhuma lição schopenhaueriana [no cinema]. Não vejo no teatro, na música, no cinema do século XX. Ainda menos no cinema. Que propósito serve? Não existem factos. O próprio Aristóteles nos ensinou isso. O facto existe se é contado. Ou seja, vive... mas só porque aconteceu. (...) A História não existe. É só uma narração desconexa de factos que nunca aconteceram. De qualquer modo, presta demasiada atenção aos tormentos das massas. (...) 

O cinema é este estranho inquilino: sempre se obstinou em ocupar uma casa que não lhe pertence. 

O cinema é sempre dialéctico, como um péssimo teatro de prosa. Não tem a graça do melodrama, por exemplo. Ou a folia do melodrama. Nunca há um assunto que é... em pornografia, precisamente, que é visualmente pornográfico, ou auditivamente pornográfico. Eu digo isto no sentido de ob-sceno, ob skene (fora de cena), a origem do termo. (...) Eu estou a falar quando o objecto e o assunto são complementares, se tornam o númeno kantiano. Há sempre representação e vontade. Nunca abandono, nunca vi abandono no cinema, nem no teatro, nem na música do século XX, nem mesmo na música do grande Stravinsky. Temos de recuar ao século XIX, a Rossini, a Bellini, a Pergolesi, ou a Cimarosa. (...) É o libertar-se da língua, é o libertar-se da linguagem o que importa; ocupar-se dos buracos [da linguagem]. É o conceito que Lacan percebeu e usou em pleno. 

O pior inimigo do cinema é o autor. Acho que não há um único italiano hoje que não tenha usado uma câmara de vídeo para filmar alguma coisa. Nós precisamos de organizar um festival para pessoas que verdadeiramente nunca estiveram no cinema... e nunca filmaram nada - nem mesmo em Super 8. Para eles, vale a pena um festival! Ou um festival para pessoas cegas... (...)

O filme consiste sempre em acções filmadas. Quase uma história, uma narração histórica da acção, mas a história foi sempre a não-história do acto. O acto nunca é a acção. O acto é o esquecimento que nos domina, como dominou Lorenzo de Medici... e todos os tiranicidas, quando trespassam o tirano com uma espada. Aí, eles não podem pensar se concordam, na ideologia, na ética, na deontologia, na moral - devem agir! Eles não existem mais. (...) Nunca vi nada espontâneo no cinema. [No set pode-se] tropeçar, cair. No cinema, refilma-se a cena. "Stop! Isso não está bem! Vamos fazer outra vez!". Muito se refilma! 

[Nos filmes, as personagens] são ou milionárias ou pobres desempregadas, com ou sem a proverbial bicicleta neo-realista. Em filmes com Cary Grant, etc. as personagens, estão, na realidade, sempre desocupadas. Elas não fazem nada. Elas chateiam os vizinhos e por aí fora, mas depois quando é que trabalham? Eu quero dizer o posto de trabalho, correctamente considerado uma forma de escravidão.  Onde está a sua linha de montagem? (...) 

Quando a música supera a música na sua musicalidade, há uma força energética. O cinema ainda existe unicamente na percepção, na ideologia. (...) Nunca acede, porque é uma mediação ao inconsciente. Não podemos aceder ao que é incompreensível. (...) 

(...) Eu nunca vi um filme que mostrasse a vista. Ele mostrou-me especificamente isto ou aquilo... (...) Os realizadores não têm um emprego. Eles não têm nada para fazer, porque é suposto eles fazerem aquele filme e nada mais. 

"E Tudo o Vento Levou"? Qual "E Tudo o Vento Levou"? Nem uma folha se mexe! E não há absolutamente vento! É uma coisa de efeitos especiais, vê-se logo! (...) Quando vemos uma coisa um pouco diferente, mesmo o diferente [acaba por ser] homologado. Qualquer Estado, sobretudo democrático ou republicano, contempla o que é diferente. Não o negligencia, muito longe disso! Ele quer subvencioná-lo, se puder. Como um rebanho. Nós encontramos sempre uma ovelha negra, mas será sempre uma ovelha. (...)

O Festival de Veneza é um acontecimento onde milhares de filmes são destruídos. (...) Temos de destruir a informação como um inimigo da cultura e a cultura como uma inimiga da iliteracia que deve ser restaurada. Cultura no sentido de Derrida, com uma raiz no "colo", colonização. Mas se a cultura é colonização, o que raio é a informação, que nunca nos informa dos factos, mas antes in-forma os factos? (...) 

Não digo que não devia haver jornalistas. Não é por serem seguidos por tanta gente! (...) Os jornalistas tendem a poluir a linguagem, eles misturam qualquer coisa do inglês com expressões alemãs, numa maneira... Eles buscam qualquer coisa excêntrica. (...) Como se pode ler em profundidade qualquer coisa escrita no Panorama, Expresso, Repubblica? Ou, para mais, no telejornal? Eles sabem subconscientemente, num sentido freudiano, que o desconhecido comum pertence às massas, mas também a eles [jornalistas]. Quando eles nos mostram uma catástrofe, não confiam na consciência do espectador. "Olhem para esta catástrofe!", "Vejam como é terrível isto!", "Vejam quanto é o sangue!". É a palavra falada que deforma factos e desinforma, quando deveria informar. (...) Desconfiam da imagem. (...) Não há necessidade de comentar. (...) Não está na orelha, está nos olhos! Esta desconfiança é sintomática do que disse sobre o cinema. Nem mesmo os jornalistas se fiam nas imagens! 

Está morto, é coisa asséptica. Não está nas sensações, como Bacon existe nas sensações. Bacon não fazia pintura. Não tem nada de visual. Aqui, voltamos ao brilhante ensaio de Gilles Deleuze. Não deixa escapar nada, Gilles. Ele sim é uma máquina. Não posso ir ao cinema, porque a certa altura é como quando uma mosca pousa no ecrã do televisor. [Depois perguntam:] "O que viu ontem?". [Resposta:] "uma mosca". 

A imagem é exangue. Mas não tem sequer a graça de uma certa convalescença. Como todos os problemas, este é um falso-problema. É por isso que o cinema continuará a ser um problema para pessoas preguiçosas, comentado por comissões republicanas e democráticas de cultura. 

Não há nada a celebrar. (...) Como um necrófilo gosta de ir a cemitérios, outros maníacos vão ao cinema. Mas já não precisa de ir para aí, porque agora há a televisão. Não é um verdadeiro substituto, mas tanto melhor! Porque o cinema não tem um telecomando. A invenção da televisão destruiu o entretenimento. Também destruiu a sala de estar, mesmo num sentido positivo. Destruiu a palavra e destruiu a conversa; destruiu a análise da linguagem e da contra-linguagem... [No cinema] quando a película se rompe - lembro-me disso - toda a gente protesta com o projeccionista: "Despacha-te!" O que raio estavam as pessoas a ver? Eu não sei. O único acontecimento que teve lugar foi o rompimento da película. Sei que também é uma coisa subconsciente o facto de terem implicado com o projeccionista. Porque ele é o verdadeiro autor, lá atrás. 

Para saber mais sobre Bene...

2 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

São ideias interessantes, algumas demasiado extremas, sobre o cinema, mas digo-te, Nostra Signora Dei Turchi foi dos filmes mais entediantes que já tive de aturar :P

Hoplita disse...

É o libertar-se da língua, é o libertar-se da linguagem o que importa; ocupar-se dos buracos [da linguagem]. É o conceito que Lacan percebeu e usou em pleno."

Não conhecia. Encantado.
Obrigado.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...