terça-feira, 23 de abril de 2013

Museum Hours (2012) de Jem Cohen


Falar de um vigilante no Museu de História de Arte em Viena é falar de alguém que "vê à distância" tanto quanto "fiscaliza distâncias". Estar num museu é, enfim, uma oportunidade para criarmos distâncias - as mais justas possíveis - com aquilo que queremos admirar. Podemos ver, mas não podemos tocar. Johann garante que a visão se torne táctil antes que as mãos cheguem ao quadro, à máscara ou à estatueta. A sua profissão é observar, a tempo inteiro, "quem observa" e, nos intervalos, os objectos dessa contemplação. Johann conhece cada um dos quadros expostos no museu, perde-se por vezes nos mil e um pormenores de um Bruegel ou na escuridão "iluminante" de um Rembrandt. Vê pessoas, vê arte e, como tudo isto lhe dá um prazer evidente, faz-nos interrogar - e o filme puxa-nos para aí... - sobre a forma como, noutros tempos e noutros contextos, se viu o mesmo quadro, a mesma máscara, a mesma estatueta. O filme, por sua vez, responde com a mesma delicadeza e sensibilidade à sua visão e às suas palavras sempre ponderadas e in-formadas, isto é, que "abundam em formas". Trata-se de uma obra feita na medida justa da sua personagem, isto é - de novo, a problemática de museu -, que nos confere a distância certa para podermos contemplar a sua existência.

Esta é uma parte do filme, mas "Museum Hours" consegue ir mais longe, quando insere no "habitat" do protagonista um elemento estranho, uma visitante que vem de Montreal para ver uma amiga em estado de coma. Jem Cohen "usa" uma personagem para "provocar" uma história na vida de Johann para lá da sua narrativa pessoal. Anne será o elemento que, em parte, vem ficcionalizar a história de Johann, o que não quer dizer que esta personagem foi "criada" para "irrealizar" a existência riquíssima deste homem, muito pelo contrário: Cohen convoca Anne para, muito literalmente, levar Johann para fora (outdoor). A certa altura, o próprio confessa que foi graças a ela que redescobriu certos recantos da cidade onde vive desde sempre, que conhecerá tão bem como cada um dos quadros do Museu onde trabalha - e, por isso, também vive - há muito tempo. Johann sai - e nós com ele - para mostrar o lado não turístico da cidade, esforçando-se minimamente, talvez em vão, por evitar a "musealização" (no sentido de Malraux e Baudrillard) da sua Viena, mas é interessante como Anne também leva o "exterior" para o Museu, abrindo caminho, nem que seja hipoteticamente, à sua (também aparentemente desejada por Johann) desmuseificação plena.

Cohen alterna as descrições academicamente blindadas dos guias e áudio-guias com as perambulações puras de Anne em frente aos quadros, exteriorizadas por esta na companhia de um sempre-curioso Johann. É muito inteligente a forma como Cohen vai jogando com este interior/exterior, museu/rua, academismo/espontaneidade, ontem/hoje, arte/vida, sempre sem trair minimamente a real existência do seu protagonista. O último fenomenal instante de "Museum Hours" resume todo o gesto: a imagem banal, filmada em vídeo, de uma velhota a subir uma rua, uma rua "anónima" de Viena..., é comentada em over por uma voz despersonalizada - não sei se do próprio Johann... precisava de rever e que bom que deve ser rever este filme! - que a descreve com o vernáculo técnico típico dos áudio-guias. Trata-se da última inversão que Cohen põe em cena: se antes tínhamos um objecto "academizado" pelo discurso institucional "de museu" a ser comentado "sem preparação" por Anne, agora temos um fragmento banal do dia-a-dia contemporâneo filmado "sem arte" a ser descodificado pelo mesmo linguajar impositivo e ditatorial "de museu". O que se passa é que neste momento o discurso sai do seu próprio espartilho e ganha um novo sentido - sentido de liberdade, de intemporalidade - parido pelo contacto com aquela imagem não elaborada, não preparada, não musealizada, mas, lá está, mostrada na sua distância justa e certa ao espectador. Muitas linhas mais poderia escrever sobre este filme fascinante e tocante, resta-me dizer ao leitor que foi o melhor filme que vi no IndieLisboa 2013 até agora. Mais: é um dos melhores filmes que vi em sala este ano.

("Museum Hours" passou hoje, dia 22, secção Observatório. Volta a ser mostrado no dia 24, às 17h00, no Cinema City Classic Alvalade, e também no dia 27, às 19h15, no mesmo local. Não me faça a desfeita de perder este filme. E, já agora, que as distribuidoras nacionais não se demitam da responsabilidade de o "dar a ver".)

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