sábado, 28 de abril de 2012

Rafa (2012) de João Salaviza


A tão badalada promessa-Salaviza está à vista, desde logo, nos próprios filmes. As duas curtas, Palma e Urso de Ouro, têm sede de longas. Vejo "Arena" e "Rafa" e dou comigo a especular como se desenrolaria a história dos dois protagonistas para lá, respectivamente, dos minutos 15 e 26. Fico com sede (mais do que fome...) de mais imagens, destas imagens, desta cadência que Salaviza não "condensa", pelo contrário, faz "expandir" dentro das suas narrativas urbanas de marginais, próximas de uns Dardenne ou, melhor, de um Ramin Bahrani, mas com bem mais toque de mestre que este último. Em "Rafa", por exemplo, fica provado o gosto por uma certa suspensão da acção, o fare niente das personagens e a contemplação do tempo a passar - não é este o maior luxo para quem tem uma pulseira electrónica no tornozelo que diz "15 minutos" ou "26 minutos"?

Não haja dúvidas: a curta duração é uma prisão para os desassossegados e os exibicionistas. A curta-metragem, a melhor curta-metragem, é aquela que se quer longa e para se ter este "sentido de mais", esta sede ou fome de imagens, é preciso não saciar ou, dito de outro modo, saber gerir o insaciamento do espectador, por isso, os melhores nesta arte  resguardam a acção, as personagens e deixam o tempo transcorrer. Exige, portanto, grande maturação - não deverá ser, aliás, a curta-metragem a mais perfeita escola de maturação dos tempos fílmicos?

Salaviza não se deixa perturbar (ou fascinar em demasia) pela limitação do tempo, porque - sabe ele - dessa limitação se pode surpreender, com uma força inesperada, uma dimensão incontornável das nossas vidas que é a espera. "Arena" e "Rafa" partem de imagens semelhantes: o jovem "preso" em casa recosta-se languidamente no sofá, de tronco nu, e deixa o corpo apanhar o fresco da ventoínha; o jovem Rafa, de tronco nu, protege-se do calor abrasador do apartamento empoleirando-se à janela, para receber o ar (mininamente) fresco da rua, depois queima uma folha e lança-a janela fora... Parece uma personagem de Tsai-Ming Liang ("I Don't Want to Sleep Alone") ou de Anh Dung Tran ("The Vertical Ray of Light"), porque se mostra a nós nos seus pequenos rituais em torno de um "fazer nada do tempo".

Se tivermos um cronómetro nas mãos, este dir-nos-á que o tempo que passou é insignificante, mas Salaviza expande-o, sem deixar de nos envolver na acção e nos colar aos corpos das personagens, como se tivesse um filme de 2 horas à sua frente. "Rafa" prossegue numa direcção diferente da de "Arena", uma direcção que consolida ainda mais esta ideia de espera, isto porque o protagonista faz uma viagem de mota; sai, portanto, do apartamento, do seu edifício, do seu bairro, para ir buscar a mãe, que está detida numa prisão em Lisboa. Rafa, que esperava por coisa nenhuma, deixando o tempo fluir, enquanto a irmã cuidava do bebé, muda de cenário, de paisagem, para protagonizar outra espera, desta feita, pela sua mãe. Espera que será maior do que inicialmente previra, como este subentende da conversa (algo tensa) que tem com a polícia, filmada de modo quase idêntico à célebre cena de "400 Golpes", em que Doinel, filmado de frente, responde a várias perguntas formuladas por uma voz sem rosto, antes de ser admitido na casa de correcção. O filme de Salaviza leva poucos minutos para nos fazer sentir parte do mundo das suas personagens, isto é, para nos fazer sentir que o tempo que passou - o tempo do cinema - pode ser maior que a duração dos planos - o tempo do filme. Lição preciosa vinda de um cineasta acabadinho de chegar.

A curta "Rafa" foi seguida da média-metragem "Nana", história enternecedora de uma menina de quatro anos deixada ao abandono na floresta, uma floresta mágica e mítica, entrecortada sempre pelo sonho de uma presença - a da sua mãe fugidia - e a envolência sempre-enigmática da Natureza. "Nana", que tem estreia comercial no dia 10 deste mês (em sessão conjunta com o filme de Salaviza), lembra outro filme do catálogo Midas:  "Yuki & Nina". A viagem encantatória, temporal e espacialmente incerta, de Nana parece convergir com o percurso na floresta de Yuki, entre a Paris contemporânea e um Japão ancestral e assombrado (mizoguchiano). Também a pequena história do coelho e do seu enterro desajeitado me faz viajar até outras paragens, mais concretamenta, "Jeux interdits" de René Clément, magnífica fábula sobre a infância e a morte - com uma menina tão encantadora quanto a pequena protagonista cujo nome intitula este que é o primeiro filme da francesa Valérie Massadian.

[Deixo uma sugestão à distribuidora Midas, a pensar no dia da estreia nacional deste double bill: peço que não passe a curta de Salaviza como o aperitivo de "Nana", mas como o "prato forte" da sessão. Proponho que a Midas se supere no arrojo e exiba "Rafa" não antes, mas depois de "Nana". Não quero, com isto, desvalorizar o trabalho de Massadian, mas, ao invés, valorizar o excelente trabalho (já francamente adulto) de Salaviza ou a forma como o modelo, tradicionalmente insosso, da curta foi e tem sido tão potenciado por este.]

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