segunda-feira, 9 de abril de 2012

Gaea Girls (2000) de Kim Longinotto e Jano Williams


Kim Longinotto é uma cineasta de mão cheia. Não é fácil provar as virtudes de uma cineasta que, mimando os grandes mestres (Wiseman e irmãos Maysles), se fixa na parede, quase invisível, perscrutando e vigiando o que se passa... O efeito "mosca na parede" é já um lugar comum, por isso, não é por aí que a especificidade ou - palavra perigosa... - originalidade do olhar desta documentarista, que conheci há pouco tempo via o notável "Divorce Iranian Style", se revela em toda a sua evidência. Como é que uma estética sublime da transparência nos dá a ver a virtus - isto é, força criativa e criadora - de uma cineasta-mosca?

Quando a câmara não se sente, ou está no limite da impalpabilidade - só característico do real que se desdobra à nossa frente em sucessivos acidentes incontroláveis -, o que nos resta para avaliar ou capturar é só gestos, expressões de rosto, movimentos, em geral, movimentos, em particular, palavras ditas ou insinuadas, uma lágrima, uma flexão de um músculo, e a forma como tudo isto é coreografado no plano e cosido na montagem. E é aí que o talento de Longinotto aparece em todo o seu esplendor: ela sabe quando cortar, sabe a medida da justeza do "viver" das pessoas que filma e, por isso, não totaliza (ditatorialmente) esse "viver" com a sua câmara - ou nunca pensaram que, se calhar, o reality show é uma corruptela, bem perversa, do modelo do documentário observacional wisemaniano? A fronteira de um para outro é como a fronteira entre o ridículo e o sublime: ténue, demasiado ténue para os grandes cineastas, que encaram seriamente a sua abordagem documental da vida como uma ética, ou uma ascese moral, inalienável.

"Gaea Girls" podia ser um reality show kinky ou quirky ou kitsch ou simplesmente bizarro/ridículo sobre uma "escola de mulheres", com corpo de homem, que ganham a vida a praticar wrestling, modalidade híbrida, que oscila entre a luta agónica corpo-a-corpo, onde se sangra de verdade, e um jogo de máscaras, faz de conta, onde se finge a rivalidade, a ira e a vontade de ver sangue no rosto da adversária. Um bom lutador, um bom "corpo atlético", não basta para se ser uma gaea girl. Longinotto vai-nos mostrando a dureza do processo de formação destas jovens mulheres - algumas acabadas de entrar na adolescência -, sem nunca cair no erro - na tentação, apetece acescentar, "de reality show" - de caricaturar o seu projecto de vida. De facto, falamos aqui verdadeiramente de um "projecto de vida", algo por que todas aquelas mulheres batalham, mesmo fora do ringue, com a seriedade equivalente ao trabalho de uma companhia de teatro ou de um ginásio de boxe (curioso que Wiseman se tenha interessado recentemente por este tipo de ecossistemas, no seu "Boxing Gym", filme que, ainda assim, leva tareia de "Gaea Girls").

A forma como Longinotto nos mostra o empenho de uma das raparigas que tenta, a todo o custo, transcendendo-se por vezes, tornar-se profissional nesta sui generis métier, é a linha condutora do filme, ao passo que as sucessivas desistências de raparigas que vão entrando na "escola" servem de concomitante elemento tensional nesta narrativa "de carne e osso". Só "carne e osso", é isso que as wrestlers wannabe desta academia parece que são, nomeadamente, aos olhos de Chigusa Nagayo, a lutadora mais experiente, mais consagrada, do ramo. Uma professora implacável, uma autêntica sargenta de ginásio, que não perde um instante que seja sem humilhar as suas meninas, levá-las a um limite físico e moral que elas próprias desconhecem ter - e terão?

Há um momento, que a meu ver é fundamental para ser perceber a tal virtus de Longinotto na realização, que resume bem a dureza desta relação mestre-aluna: a rapariga, que está a ser testada para se tornar profissional, chora copiosamente enquanto ouve as palavras assassinas de Chigusa. Só vemos Chigusa, com o seu olhar indiferente, a desferir cada crítica como uma chapada no rosto da aluna, já ela de corpo desfeito em resultado do violento teste. De repente, num movimento subtil de câmara, vemos o seu rosto, um rosto que ouve, mudo - sinal de reverência -, um rosto que chora silenciosamente, como que "para dentro" - sinal de estoicismo, de resistência... às palavras e à dor -, mas, antes de tudo, um rosto que sangra. A professora diz-lhe que ela não pode desistir de lutar por ter um ou outro corte no rosto, ela tem de continuar... senão será esmagada no ringue. Diz-lhe que deve desistir. Mas ela, com o rosto sangrado, em implosão emocional, persevera. Sabemos depois que lhe será concedida uma segunda oportunidade.

Longinotto capta uma espécie de instante decisivo wisemaniano quando não mostra imediatamente a imagem de quem ouve, no caso, a aprendiz. Até então, o espectador não se tinha apercebido da dureza daquele mundo, mas a partir dali - seja pela fragilidade daquele corpo, simbolizada pelo sangue que dele escorre, seja pela fragilidade do espírito, simbolizada pela luta que a aluna trava consigo mesma para não chorar - percebemos que ninguém ali e nada ali se pode prestar a qualquer tipo de caricatura ou novela kitsch televiseira. É um jogo, é uma brincadeira "de faz de conta", contudo, é também uma coisa muito séria. A bitola é outra, a câmara capta a justa medida do que se vive naquele ginásio e naquele ringue: "jogam-se projectos de vida ali, tão-só", diz-nos a câmara de Longinotto.

Falei de uma opção de realização que, digamos, solidifica a tal virtus do gesto documental de Longinotto. Contudo, falta ainda referir um aspecto da montagem que também assinala, de forma clara, a sensibilidade do seu olhar. Chigusa já mostrara o seu lado humano - ela, longe das novatas, diz que ama as suas alunas como se fossem suas filhas -, mas só nos aproximamos da essência desta pessoa, desta "personagem", no final, único momento em que Longinotto decide pô-la a falar em frente à câmara. Chigusa fala do pai, da sua "educação de militar", sem cedências e da forma como agora a reproduz nas suas meninas. Ela não procura "justificar" o seu método, apenas nos dá matéria para compreendermos, em pleno, esta sua (anti-)pedagogia do ódio - o ódio ao mestre transformado em amor-força sem fim pela luta... contra este ou qualquer oponente que se atravesse, no seu lugar, dentro dos quatro postes do ringue de néons, palco disso mesmo: ódio, amor e força, tudo pegado. Ou seja: é tudo uma questão de respeito.

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