sexta-feira, 17 de maio de 2013

Abram alas para o dossier 'Raoul Walsh, Herói Esquecido' (III)


Mais um enorme prazer. O À pala de Walsh acaba de pôr a circular, pela primeira vez na Internet, uma minuciosa e densa análise a "The Roaring Twenties", filme que em português ganhou o título "Heróis Esquecidos", fonte de inspiração para o nome que acabámos por dar ao nosso dossier. A autoria é do Professor João Mário Grilo e a transcrição foi feita por mim, com uns microscópicos ajustes. Fechamos o primeiro capítulo deste dossier com esta (re)publicação de um texto que consta da obra "A Ordem no Cinema", publicada pela Relógio D'Água em 1997. A partir de agora, publicaremos apenas originais, exclusivíssimas reaproximações ao extenso e intenso universo de Raoul Walsh.

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The Roaring Twenties não se limita, portanto, a rever o género, acomodando-se às exigências da censura política e moral dos novos tempos; o engenho da construção de Walsh e Hellinger - a começar pela projecção no passado da história do gangster Eddie Bartlett (James Cagney) - faz dele um filme retrospectivo, uma verdadeira peça de teoria, se não do género, pelo menos de um estilo particular de narrativa, de formas e de personagens.

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Ao colocar a história de Eddie Bartlett no passado, Walsh tem a oportunidade única de fazer o derradeiro filme desse estilo, antes que um outro cinema lhe venha ocupar o lugar, como justamente Eddie diz a George Halley (Humphrey Bogart), no confronto final que os opõe, e os conduzirá à morte: «There's a new kind of cinema you don't understand».

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A guerra tem, de facto, em The Roaring Twenties, uma importância dramática decisiva, a ponto de ser ela que, em última análise, acaba por estruturar a visão de Walsh sobre a América, na transição da década de 20 para a de 30. O retorno a casa dos três soldados - e, em especial, o retorno a casa de Eddie Bartlett, que é quem nos conduz nesse trajecto - é também o retorno a um teatro de guerra urbana, onde a corrupção, os negócios escuros e o submundo do crime ditam as suas leis sobre um país esfacelado pela crise económica e a depravação social.

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A guerra originária - a dos campos de batalha franceses - ecoa, portanto, em The Roaring Twenties como um fantasma avassalador e unificante. Bartlett e George são personagens de uma morte adiada ou - o que não é, precisamente, o mesmo - de uma morte que o filme adia (porque - não o esqueçamos - a enunciação lhe conhece o destino).

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The Roaring Twenties é também um filme habitado por uma estranha e amarga nostalgia. É qua se Walsh parece saber muito bem de onde o género saiu - de personagens (de criaturas) e de um cinema que emerge dos «ruidosos» anos 20 -, parece saber muito melhor onde ele termina: na legalidade optimista e higiénica dos anos 30, que não só coloca no desemprego, na prisão, ou numa reciclagem improvavelmente regeneradora, os verdadeiros «bandidos» que construíram a fama e a fortuna numa América predominantemente ilegal, como ameaça expulsar do cinema (pela censura, pelas leis do mercado) as figuras que outrora lhes deram corpo e substância: personagens, actores, histórias, modos de filmar. É por isso - por esse paralelismo constante e surpreendente - que a já citada fala de Cagney para Bogart, na cena final, assume uma tão grande importância: «there's a new kind of cinema you don't understand». A guerra que estes homens travem é, sobretudo, uma guerra contra o tempo.

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Esta curta sequência - em que Eddie, na sua condição de motorista, conduz Jean a casa - é das mais belas e das mais bem estruturas de todo o filme, porque condensa - muito menos no diálogo do que no modo de filmar - tudo o que o filme não cessa de mostrar desde as primeiras imagens: a projecção temporal das histórias de cada personagem - a cada um, uma história e um tempo -, como a chave de todas as dissensões e rupturas, de todas as proximidades e distâncias.

Walsh serve-se, aqui, do táxi, como uma curiosa máquina do tempo, apoiando-se na dicotomia interior-exterior. Jean está sentada no banco de trás, recortando-se no limite da janela traseira do automóvel (através da qual vemos o exterior) e reflectindo-se, simultaneamente, no retrovisor de Eddie.

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O plano é curto, mas inscreve na topologia da imagem o logro fatal de Eddie, assaltado por uma verdadeira miragem temporal, que não reproduz - e este pormenor é interessante e decisivo - uma qualquer subjectividade psicológica (uma visão), mas o modo realmente físico (óptico) como o personagem se inscreve no espaço e (porque é essa colagem que o filme nunca deixa de promover) se posiciona no tempo: o que vemos que Eddie vê é, portanto, exactamente, tudo aquilo que ele (não) pode (deixar de) ver.

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À excepção desta tomada de vistas - que nos diz que tudo aquilo se passa dentro de um carro em andamento -, Eddie e Jean são personagens que, de facto, experimentam a história de maneiras diferentes e opostas, lembrando muito o que Claudel dizia das viagens de comboio: o passageiro que vai sentado no sentido da marcha olha para o futuro, enquanto o que lhe está à frente é forçado a olhar para o passado.

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