segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Por uma crítica da crítica, por uma contra-crítica (de novo)

O crítico de "Lady in the Water" (2006) de M. Night Shyamalan

No outro dia li algures um comentário de um cidadão que se mostrava indignado com outro comentário de outro cidadão, por este estar a criticar uma crítica... A crítica, que deve ser mais do que um comentário - mas também, na Internet, todos sabemos que há comentários que se confundem com análises críticas -, era do agrado de um e do desagrado de outro. Esta teve o mérito de produzir dois discursos no espaço de pouco tempo. O filme, no centro, funcionou como motor desta inusitada triangulação argumentativa. (O filme funcionou como motor, ou melhor, só funcionou exactamente enquanto se abastecia da energia que emanava dessa agitação intelectual além-sala.)

Acredito piamente que os filmes servem tanto para ser criticados quanto as críticas que deles decorrem. É o pensamento em torno do cinema que oferece discussão e contra-discussão e é desta dialéctica - cada vez mais espontânea e, para os mais conservadores, incómoda - que se pode solidificar o discurso, mas sempre um discurso que age não sobre, mas sob o filme ou a obra em questão. Ela mantém-se - e tem de ser assim - intocada pela crítica, mas não é - e não pode ser - completamente indiferente a todas as críticas e comentários a críticas que se trocaram antes de si sob a cúpula de outros filmes. A crítica e a contra-crítica fazem então parte de uma dança infernal que projecta novos filmes e novas danças.

Gostos sobre filmes não se discutem? Discutem-se, discutem-se os gostos, a forma como os sabemos ou não articular, etc.: o que não se discutem são os filmes*.

* - Salvo, está claro, se estiver em cima da mesa a legitimidade da obra.

PS: Dedico este post, obviamente, a todos os "opinion makers" profissionais que gostam de malhar na blogosfera pela "inanidade geral" e nos media pelo seu "déficit democrático", mas que depois não toleram - banem, aliás, dos seus espaços... alguns deles os mais redondamente blogoesféricos - uma argumentação, por menos implicativa que seja, com um leitor. Fazem-me lembrar aquela história do Groucho Marx: "Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio". Agora é experimentarem a carapuça para ver se serve ou não.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O meu último adversário: numa paragem do 28


A equipa do manager (leia, por favor, por amor de Jesus, "manÁger") João Lameira impõe-me um enorme respeito e até digo mais: desde os quartos-de-final que é uma das minhas favoritas. Não só pelos autores escolhidos, na realidade, mais até pelo delirante texto que fundamenta as suas escolhas. Digo "mais até", porque, de facto, há ali uns três ou quatro jogadores que nunca entrariam numa equipa minha: como o próprio João Lameira disse em conferência de imprensa, eu é mais "homens de barba rija" (salvo seja!), logo, não me estou a ver a chamar para a minha equipa um Demy, um Ophuls ou um Woody Allen.

De resto, nos duelos mais directos, devo dizer que receio mais a parte central da equipa do míster Lameira do que o jogo pelas alas, algo inconstante e, como digo, "frágil" - um Carpenter ou um Boetticher, com o seu poderia físico, deita abaixo um Ophuls ou um Demy só com um sopro. Os seus pontos mais fortes são, então, o seu guarda-redes - muito atento, pese embora por vezes prefira "atirar-se para a fotografia" em vez de "jogar pelo seguro" -; a dupla de defesas centrais - em regime de complementaridade quase perfeita -; os médios-defensivos - um "parte pernas" letal, Peckinpah, e à frente o box-to-box temível, altamente imprevisível, César Monteiro -; e o médio centro inventivo, Renoir, a apoiar o mais constante ponta-de-lança deste torneio, Howard Hawks. Confesso que este último é dos jogadores que mais gostava de ver alinhar na minha equipa. Quem sabe se não o "desvio" na próxima época...

Face esta poderosa espinha dorsal, o que pode o CINEdrio fazer? Bem, ainda assim, penso que pode fazer muito: o jogo no meio campo - é aí que o Freitas Lobo diz que se ganham os grandes jogos... - não está garantido para o numa paragem do 28 ou não teria eu o melhor número 10 do mundo, Hitchcock, apoiado por um grande jogador das transições rápidas, do "contra-golpe", Eric Rohmer, e, logo atrás, a proteger-lhe as costas, a dupla de defesas centrais mais sólida desta copa: Ford e Eastwood.

O CINEdrio quer ganhar isto, mas, desta vez, não se assume como favorito para este embate com o numa paragem do 28. Como dizem alguns brilhantes comentadores desportivos: "são os dois favoritos".

Vote aqui.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O cinema em televisão

O cinema em televisão: conserva o seu temperamento original, perdendo um pouco do seu fascínio por via da colocação reduzida e da ausência do rito, grande cúmplice de tantos sucessos.

O pensamento é de Ermanno Olmi - tirado do livro O Novo Mundo das Imagens Electrónicas (1985) de Guido Aristarco, editado em Portugal pela Edições 70 - e serve-nos a nós, muito especificamente, para acabar de vez com a ideia, partilhada por muito boa gente, de que "o cinema é só para ser visto no cinema". Os agentes do cinema hoje, ainda para mais, face ao fenómeno do digital, devem pensar muito desassombradamente sobre os meios de conservação do cinema no imagi(n)ário televisivo. É que "cinema na televisão" não quer dizer a destruição do primeiro em virtude do segundo. Bem pelo contrário, quer dizer: a conservação - numa certa memória colectiva - do primeiro pelo segundo. Agora é preciso alguém que restitua, aqui no nosso país, a irmandade perdida entre os dois...

A grande final da Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty

Still de "LOS" (2001) de James Benning

As meias finais tiveram menos votações do que esperávamos (11 no primeiro e 17 no segundo encontros), mas os resultados estão aí e não há volta a dar. Na grande final estará a equipa do numa paragem do 28, que esteve ali num intenso "taco-a-taco" com a excelente equipa do In a Lonely Place - e que ganha, pela segunda vez, por apenas um voto de diferença! -, que vai defrontar a equipa do CINEdrio, que foi bem tough (usando a palavra favorita de um dos meus defesas centrais) com a equipa do Breath Away - de pouco lhe valeram os espertos mind games... -, na primera grande final desta competição inédita da blogoESFERA...

Eis, então, os 11 iniciais para esta primeiríssima grande final da Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty. Cabe agora a vocês, adeptos fervorosos, decidir qual será a natureza deste ending cine-futebolístico.

Grande final: numa paragem do 28 (a preto) vs. CINEdrio (a azul)


Votai rápido, porque as urnas encerram já na próxima segunda-feira, dia 31 de Janeiro.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A alavanca de Bergman: desceu a escada social para se elevar espiritualmente

Roberto Rossellini, "Europa '51" (1952)

Descida, condição da subida. (...)

Alavanca. Baixar quando queremos elevar.
Do mesmo modo «aquele que se baixa será elevado». (...)
A desgraça humana contém o segredo da sabedoria divina, e não o prazer. (...) Apenas a contemplação dos nossos limites e da nossa desgraça nos coloca num plano superior.
«Quem se baixar será elevado.»

Simone Weil*, A Gravidade e a Graça (1947), Relógio D'Água, 2004, p. 95

* - O paralelismo resulta ainda melhor se tivermos presentes alguns dados da sua vida.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

CINEdrio nas meias finais da Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo...


O meu adversário, com o seu ataque feito da artilharia mais pesada do exército, teve uma das mais espectaculares performances de entre os jogos dos oitavos-de-final. Foi, aliás, o protagonista da maior viragem no marcador, ou seja, sofreu muito, mas também, por outro lado, marcou mais. Isto denota duas coisas: um ataque, de facto, explosivo, com o trio Tarantino, Murnau e Peckinpah bem duro de roer; e, contrariamente, uma defesa macia, talvez demasiado "sensível", sobretudo, para aguentar o meu ataque criativo e implacável. O seu número 10, Soderbergh, também não penso que seja jogador para esta competição, logo, arrisco dizer que no meio-campo o Breath Away FC tem ali um ponto fraco para ser explorado. De facto, em matéria de organização, Hitchcock superiorizar-se-á sempre, abrindo os caminhos da vitória à restante equipa do CINEdrio. Concorda?

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

As meias finais da Copa... A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty


O nome desta Copa cine-futebolística é parecido com o título daquele romance de Peter Handke que Wim Wenders adaptou ao cinema? Sim, ok, é parecido, mas não engana ninguém. Estamos a falar de futebol e de cinema ou, se preferirem, de cinema e de futebol. O baptismo foi feito numa votação onde o grande vencedor saiu com mais de 60% dos votos.

Já quanto aos jogos propriamente ditos, devo dizer, em flash interview, que foi emocionante assistir à evolução de alguns embates. A meteórica recuperação do blogue Breath Away (num jogo onde juntámos 35 votos) nos últimos dias parecia uma daquelas viragens de 180 graus, próxima de um Portugal-Inglaterra do Euro 2000. A Sombra do Elefante não deveria estar à espera de um desfecho destes, depois de ter estado grande parte do jogo a comandar as operações.

A renhidíssima disputa entre duas grandes equipas, a do numa paragem do 28 e a do Cine Resort (num jogo que reuniu 25 votos), também suspendeu a publicação deste post até ao último instante.

De resto, posso dizer também que o CINEdrio promoveu uma boa recuperação face à muito forte Modern Times FC (num jogo que juntou 27 participações), que se calhar pecou por ter dispensado no início da época a sua estrela mais emblemática, apelidada pelo presidente do clube de "maçã podre", que acabou por ir parar ao cesto do Cine Resort. Falo, obviamente, de Charles Chaplin, o genial defesa esquerdo (historicamente habituado a todo o tipo de perseguições...).

In a Lonely Place (num jogo que teve um total de 26 votos) foi a equipa que esteve mais tempo à frente, o que só denota uma grande consistência e capacidade organizativa do seu treinador. Ainda assim, A Última Sessão teve uma participação combativa.

Os jogadores das equipas que sobreviveram a esta primeira eliminatória já têm motivos para festejar: estarão na sondagem final para eleger a "equipa das equipas" ideais. (Antonioni já sabia que ficaria nomeado para melhor guarda-redes, visto estar nos dois lados da barricada na disputa entre numa paragem do 28 e Cine Resort.)

Passamos então a publicitar os jogos das meias finais, sugerindo de novo a todos os concorrentes que publiquem a sondagem e o link para o post do vosso adversário, especialmente, onde este justifica a sua selecção.

Segunda-feira fechamos esta sondagem e anunciamos a grandíssima final.

1.º confronto: numa paragem do 28 (a preto) vs. In a Lonely Place (a azul)


2.º confronto: Breath Away (a preto) vs. CINEdrio (a azul)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Newsletter #11: Mizoguchi

Chegámos finalmente à Ásia e a um dos seus mais fervilhantes centros cinematográficos: o Japão. A constelação é vasta, mas decidimos começar com um personal favourite aqui do CINEdrio: Kenji Mizoguchi, o cine-artesão das lendas assombradas do Japão ancestral, autor de um cinema com gravitas sobre amores maiores do que a História, perdidos no tempo, mas sempre enraizados na cultura e na tradição do seu espaço. (Recordo Nobuhiro Suwa, que dizia, para espanto de alguma plateia, que Mizoguchi era, em comparação com Ozu ou Kurosawa, o cineasta mais japonês do Japão.)

Quanto às rubricas habituais, podemos prometer notícias sobre algumas apetecidas raridades, como um Antonioni a pensar a China de Mao, como um Clouzot a "processar" cada gesto do génio de Picasso, como um Mickey Rourke a dar corpo a Charles Bukowski... Mais filmes, como reedições de obras de Chaplin em DVD ou de Hitchcock em Blu-ray, serão devidamente publicitados na newsletter número onze.

Em matéria de livros, podemos antecipar a inclusão de reedições recentes de obras de Bourdieu, um estudo sobre Wittgenstein, algumas promoções em livros de Deleuze e Guattari, o pré-lançamento das memórias de Claude Lanzmann, de um monumento filosófico que Sartre dedicou ao seu herói Jean Genet e muito mais texto que nos faça reflectir sobre a representação e a imagem.

Ao nosso inquérito, responderá a Professora Leonor Areal, autora dos dois volumes, recentemente publicados pela Edições 70, sobre a história do cinema português - que destacámos na edição anterior.

O que me calhou na rifa: a equipa Modern Times


Olho para o meu adversário e vejo um guarda-redes que não falha uma, mas, vamos lá ver, também não se conhecem grandes frangos dados pelo inexpugnável James Benning - né verdade?

Vejo também uma defesa menos "pesada" do que a minha; talvez, dou de barato, mais criativa do que a minha. Tanto Tourneur como Kazan souberam subverter dentro de certos limites os mandamentos do paradigma clássico e Ozu foi um moderno desde os seus filmes mudos. Jarmusch é um intérprete notável dos silêncios e linhas do cinema do mestre nipónico. Ao centro, o Modern Times FC tem, de facto, um regime de complementaridade que mete respeito.

Contudo, comparativamente, a minha defesa é old school, dura e não se dispersa tanto. Apetece dizer que para passar uma dupla como Ford-Eastwood, ser duro não chega.

No meio campo adversário, nitidamente, menos "garantístico" do que o meu, vejo jogadores de enorme peso - e confesso que um deles tentei em tempos seduzir para a minha equipa, mas em vão: Orson Welles. No entanto, se Kiarostami assegura as suas funções e Lang não sabe "arquitectar" mal o jogo, Welles é um indisciplinado, que muitos vezes não termina as jogadas que começa. Penso que o meu meio-campo ultra-seguro, com Rohmer a servir de tampão para a linha mais recuada da defesa, aguentará os embates.

Por fim, lá à frente, confesso que me sinto quase esmagado pela concorrência: qualquer um dos três avançados do Modern Times FC, Murnau, Fuller e o ponta-de-lança Nicholas Ray, cabiam perfeitamente numa equipa idealizada por mim. No entanto, não creio que se deva subestimar a capacidade criativa de um Godard, o mais vadio dos jogadores, ou a implacabilidade frente à baliza de um Kubrick. Só pecará o meu ataque pela declarada falta de "entrosamento" entre os dois.

Olhando "árvore a árvore" talvez a minha equipa fique a perder, mas não tenho dúvidas que olhando para a floresta, devido à solidez posicional dos seus jogadores, o CINEdrio FC sairá vencedor do desafio. Concorda?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Torneio interblogues (IV): o sorteio ditou

Still de "Film socialisme" (2010) de JLG

Caros concorrentes, caríssimos leitores e adeptos, o sorteio já ditou os confrontos dos quartos-de-final da primeira edição do torneio futebolístico interblogues cinéfilos.

Todos os bloggers já publicaram as suas "equipas de sonho" nos seus espaços, apresentando a defesa de cada escolha - estes posts poderão ser lidos clicando no nome de cada espaço.

Vamos, então, ao resultado do sorteio.

Sorteio realizado via random.org

1.º confronto: numa paragem do 28 (a preto) vs. Cine Resort (a azul)


2.º confronto: In a Lonely Place (a preto) vs. A Última Sessão (a azul)


3.º confronto: Breath Away (a preto) vs. A Sombra do Elefante (a azul)


4.º confronto: Modern Times (a preto) vs. CINEdrio (a azul)



Agora que já sorteámos os primeiros confrontos, cabe a cada blogger concorrente publicar o seu duelo, postando:

1. a imagem e texto (com links) do "versus", e, se quiserem, comentário da vossa "sorte" - prognósticos e análise à Luís Freitas Lobos das principais valências e debilidades, "técnico-tácticas", do vosso oponente.

2. as sondagens com os confrontos destes quartos-de-final - se não quiserem publicar todas, publiquem pelo menos a que vos diz respeito. Onde a publicam? Onde quiserem: na barra lateral, na barra central, no próprio post... you name it!

3. o anúncio do fim da votação: precisamente, na próxima segunda-feira (16 de Janeiro).

À cara massa adepta, apelo ao voto, para que sejam lançadas as bases desta saudável competição blogoESFÉRICA! A pergunta é: que jogadores/sistemas tácticos devem passar às meias finais?

Let the games begin!

Cinema na RTP2: hora da "desocupação"

Os "vampirismos" de Polanski e Sharon Tate em "The Fearless Vampire Killers" (1967)

Esta semana voltamos a ter cinema todos os dias na RTP2, em ciclo dedicado aos vampiros, que começa com o engraçado "Por Favor Não Me Mordas o Pescoço" de Roman Polanski (hoje, às 23: 39). Os mais ingénuos terão presumido que estaríamos na presença de uma mudança efectiva na programação da RTP2 ou que, aproveitando a passagem para o novo ano, o senhor Wemans e a senhora Paula Moura Pinheiro, que destruíram por completo o canal que lideram - e que "vampirizaram" -, tinham dado o braço a torcer e investido, finalmente, numa política cultural com tronco e membros para a "sua" (ainda "sua") RTP2.

Mas não: consultamos a programação e verificamos, sem espanto - no nosso caso, que já sabemos o que a casa gasta -, que o espaço que o cinema tinha vindo a preencher todos os dias da semana, desde o início da quadra natalícia, vai ser devidamente ocupado por coisas como a nova temporada da "Anatomia de Grey".

Pergunto à actual direcção, que por vezes se diz "amarrada" ao Contrato de Concessão de Serviço Público, com base em que imperativo volta a optar por desprezar olimpicamente as suas obrigações para com o Estado. Ou, se preferirem: com que armas defende esta "desocupação" do cinema, à força de soap americanas tearjerkers, no quadro do conceito de serviço público?

Desafio o senhor Wemans e a senhora Paula Moura Pinheiro a darem uma resposta a estas perguntas simples. (Mas estarei louco? Não saberei já eu, melhor do que ninguém, que a RTP2 se está a borrifar para o seu público?)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Martha Marcy May Marlene (2011) de Sean Durkin


Martha, Marcy, May, Marlene. Quatro nomes que são uma pessoa ou então - esqueçam as vírgulas - quatro pessoas que são um nome. O primeiro filme de Sean Durkin, com título sem vírgulas, vive desta dúvida identitária e faz dela alimento para a personagem principal ganhar forma à medida que o seu pesadelo-sonho tenebroso-encantado se desenrola à nossa frente em flashes que fundem, confundem e afundam o presente no passado. Há um convite para nos deixarmos "sugar" pelo abismo invisível que a câmara abre no rosto de criança de M - não interessa se M é de Martha, de Marcy, de May, de Marlene, de Matou, não interessa até se M é de éme. M desdobra-se à medida que a ferida se vai abrindo mais e mais, aspirando-nos - num suave crescendo - para um passado traumático e - ainda - traumatizante desenrolado como um novelo no coração de uma seita "transcendentalista" de propósitos obscuros.

O grande arquitecto deste projecto humano de contornos misteriosos, onde a violação faz parte de um ritual de passagem obrigatório para as mulheres e onde morte significa "amor puro", é a diabolicamente sedutora personagem interpretada por John Hawkes - actor que vimos em grande forma no surpreendente "Winter's Bone". É ele a figura tutelar, o grande pai, desta comunidade de jovens, fugidos de casa, atormentados pela "vida em sociedade", e que buscam uma nova "existência", livre das exigências do formatado mundo dos adultos. M aparece-nos, logo no início, em fuga e assim fica mesmo quando o filme termina.

Este estado de fuga permanente - entre o passado e o presente, como também entre os diferentes "émes" do seu nome - conflitua a dois níveis: um puramente mental, em que, como a própria admite, o sonho e a realidade se misturam indistintamente; outro "de facto", em que a vingança sobre a sua deserção é pressentida. Com efeito, M está a apenas 3 horas da comunidade onde viveu dois anos de lavagem cerebral e não sabe como fugir dela/deles no presente, pelo que entra num quadro depressivo profundo - e será a partir dele que o tecido formal de "Martha Marcy May Marlene" vai sendo produzido pela câmara de Durkin.

A certa altura, M diz que não sabe fazer tricô, contudo, o tricô já está a ser feito, não pelas mãos, mas pela e na sua cabeça. Entre o sonho e o trauma, com a realidade entalada no meio, esta é uma primeira obra de inquestionáveis méritos, que joga no território de Van Sant ou de um Cuesta amadurecido, fazendo da ternura diabólica da personagem de Hawkes um dos motivos de maior "provocação" ao espectador das realidades a preto e branco. É curioso aliás como aquele idílio infernal - paradoxo bem resolvido por Durkin, pela forma como filma o "campo de concentração", e aqui "a concentração" é mesmo um dos principais leitmotifs filosóficos - consegue ser menos opressivo que a casa demasiado grande, demasiado "de catálogo" do casal de classe-média alta, constituído pela irmã de M e o seu endinheirado marido. Em cada um desses lugares (se calhar até mais no segundo do que no primeiro), M é uma espécie de estrangeira e assim permanece até ser libertada pela doença para uma situação de "quase-autismo", em que responde com a agressividade do passado recalcado às solicitações maternais da sua irmã no presente. M distrai assim as duas realidades com a sua doença - que, a bem dizer, não se sabe ao certo se precede, ou não, os eventos traumáticos que a sua cabeça encena, isto é, "põe em cena" durante o filme. Será que houve mesmo seita, que se praticaram aqueles actos, que isto e aquilo? Afinal, por que M "fugiu" da irmã há dois anos?

Eis um filme que, à la Van Sant, levanta mais perguntas do que oferece respostas. Claro que podemos dizer que Durkin quer tanto fugir às explicações que acaba por tornar a ausência de explicações numa explicação para tudo e para nada; ao ponto da psicose começar a afectar a intencionalidade do filme, ou não será que o espectador em momento algum sentiu que M e o seu sadismo psicótico eram pretextos para algumas aleatórias exposições sobre uma certa "mal resolvida e ferida de morte" adolescência norte-americana? "Martha Marcy May Marlene" deixa, por isso, essa sensação de querer tanto evitar "olhar-se ao espelho" que acaba por arriscar - um risco pouco arriscado - extrair deste apenas a ausência de uma imagem; a certa altura, Durkin parece não conseguir enfrentar nem o presente nem o passado, porque parece - e "parecer" é suficiente para desconfiarmos... - ter medo de perturbar a deambulação mental, suavidade tortuosa, low key, quase "sobre nuvens", de tudo. Digo até mais: a certa altura, já nem perguntas o filme levanta ou apenas repete as mesmas em registos visuais e sonoras habilmente nuançados, mas não muito, nunca "demasiado" dissonantes, porque Durkin não quer e, de facto, não cometerá o atrevimento de acordar a sua protagonista e, com ela, o filme do seu "sono pesado de pesadelos leves".

Esta "lisura estética" choca, a meu ver, com as oscilações dramáticas que se vão ensaiando e que, por vezes, parecem servir exclusivamente para restituir o ritmo cardíaco baixo, posto estrategicamente naquele limiar com a morte, da narrativa - por exemplo, a cena, algo desconexa, do homicídio aparece, a meu ver, como que para evitar que o torpor da história degenere no entorpecimento do espectador, que é assim arrancado à bruta da sua "zona de conforto", para onde entretanto (sem mal ou pecado) se recolhera. Apesar de tudo, a jovem actriz e as sempre poderosas aparições de Hawkes disfarçam bastante bem as insuficiências geradas pela, talvez, ainda algo "hesitante" mão deste promissor jovem cineasta.

("Martha Marcy May Marlene" foi uma das apostas, mais concretamente, a quarta aposta do CINEdrio para este ano de 2012. Aposta ganha? Sim, mas sem entusiasmos excessivos.)

sábado, 7 de janeiro de 2012

TCN Blog Awards: o aftermath


Agora que já foram atribuídos os prémios, queria agradecer de novo ao Miguel Reis do CinemaNotebook pela nomeação - não premiada - do CINEdrio na categoria de melhor artigo, um texto crítico que faz o balanço de uma iniciativa que mereceu de mim e dos meus colegas de petição muita dedicação e "amor à arte". (Recordo que a petição já tinha sido nomeada o ano passado para o prémio de melhor iniciativa, sinal do impacto muito positivo que esta teve - e continuará a ter - nalguma blogosfera.)

De resto, acho que toda a blogosfera nacional, mais ou menos subterrânea, mais ou menos profissional ou mainstream, só tem a ganhar com este género de iniciativas. Por isso faço o apelo para que continuem com esta ou ainda melhor qualidade - e, se possível, tomando mais riscos.

Torneio interblogues (III): regras até à final

Still de "Histoire(s) du cinéma" (1997-98) de JLG

Com as equipas em estágio, a maior parte delas já publicadas nos seus respectivos espaços - peço aos outros que se apressem -, resta-me desvendar mais algumas regras importantes quanto ao desenvolvimento futuro deste que é o primeiro torneio futebolístico de bloggers cinéfilos, podemos dizê-lo, a nível internacional.

Primeira: a competição, que começa nos quartos-de-final, será decidida por sondagem, a ser publicada em cada um dos blogues concorrentes, mal esteja disponível online, algo que acontecerá após o sorteio da próxima segunda-feira - que será realizado através deste site.

Segunda: para além de publicarem a sondagem, os blogues em competição deverão publicar a imagem com a sua equipa e a equipa adversária que lhes calhou na rifa, mais links para os posts onde justificaram as suas escolhas (deverão, salomonicamente, publicar o link para o post onde o adversário fundamenta a sua "selecção").

Terceira: o vencedor do torneio verá o seu esquema táctico imediatamente eleito como o melhor da blogosfera, sendo que a votação sector a sector para a equipa ideal será feita com base nesse esquema. Só os jogadores/cineastas presentes nos quartos-de-final para a frente farão parte desta sondagem final.

Quarta: sendo este um evento inédito na blogosfera, não posso prever o sucesso desta primeira edição, mas seria interessante estabelecer um desafio "sem compromisso": o vencedor do torneio fica encarregado de organizar a próxima Copa (ainda por baptizar AQUI), daqui a um ano, nos moldes que considerar mais adequados.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Imagem do passado: miniaturização encantatória dos tempos felizes

"Citizen Kane" (1941) de Orson Welles

Jalsaghar (1958) de Satyajit Ray

[Não gosto nada de emparelhar uma imagem de "Citizen Kane" com qualquer outra imagem de outro filme - devia ser uma superstição em qualquer espaço que se queira Cinéfilo... -, mas aqui abro uma excepção perfeitamente justificada pela grandiosidade poética da experiência que ocupa este "Salão de Música". Obra deslumbrante que rima com o clássico de Welles como uma (já denunciada pelo still) "imagem invertida": se o magnata fietzgeraldiano Kane olha para a bola "mágica" e sonha com a sua infância pobre, o senhor Huzur Bishwambhar Roy, outrora homem de grande fortuna e influência, hoje caído em desgraça, encontra no seu (último) copo de vinho a imagem de um passado feliz que lhe fulmina o espírito como uma tempestade seca de raios: o magnificente candeeiro de cristais do seu "salão de música", onde em anos passados os mais brilhantes músicos e performers indianos deram azo à sua Arte, para regozijo do real anfitrião. O magnata americano, o self-made man dos mass media, sonha com a pobreza; o último espécime da tradicional "realeza senhorial indiana" suspira e paralisa ante as notas lânguidas de música que ainda reverberam nos quatro cantos do grande salão empoeirado.]

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Filmes que (não) vou ver em sala (V): The Innkeepers

Não se deixem enganar pelo nome "gozão": Ti West é um realizador do caraças. Infelizmente, tivemos de recorrer a meios ilícitos para ver os excelentes "The House of the Devil" e "Trigger Man", já que estes não deram sinais de vida no mercado de distribuição e de edição nacionais - e assim se privam os portugueses de um dos mais promissores realizadores norte-americanos da actualidade.

"The Innkeepers" trará os condimentos de "The House of the Devil" - uma rapariga, numa casa, onde acontecem "coisas estranhas...". Isso percebe-se bem pelo trailer. O que não se perceberá bem por esta amostra é o ambiente lento, construído "camada a camada", que a câmara de West, realizador que conhece e domina muito bem os "tempos fílmicos", consegue imprimir nos seus filmes.

Caras distribuidoras, assegurem-se, por favor, que isto me chegue aos olhos através das vossas salas. E já este ano!

Trailer de "The Innkeepers" de Ti West

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Torneio interblogues (II): as derradeiras equipas de sonho entram em competição

Still de "Escape to Victory" (1981) de John Huston

A estas equipas juntam-se as últimas três da Copa... hmm... alguém se voluntaria para a baptizar?

Equipa de João Lameira, blogue numa paragem do 28

Equipa de O Projeccionista, blogue A Última Sessão

Equipa de Miguel Domingues, blogue In a Lonely Place

O sorteio está para breve. Entretanto, sugiro aos bloggers concorrentes que publiquem nos seus espaços post com:

1. Imagem oficial da sua equipa;

2. Justificação particular ou genérica para as escolhas - não se esqueçam que cada equipa é uma imagem do seu espaço, logo, trata-se de uma espécie de "campo de autores" que importa fundamentar.

3. Anúncio da publicação em breve do resultado do sorteio, que irá acontecer na próxima segunda-feira.

Enfim, algo parecido com o que fiz aqui.

Deverão ainda publicar, depois do sorteio, as sondagens com os confrontos dos oitavos de final - o torneio começa aqui, agora, neste momento. Now!

Il grido (1957) de Michelangelo Antonioni


Tanta beleza deixa-nos sem palavras. Acontece com os filmes mais poderosos do neo-realismo italiano, mas aqui estamos com um pé aqui e com outro mais à frente. Antonioni não é um neo-realista puro e neste filme sobre a solidão, o amor e a pobreza encontramos já as marcas de uma estética moderna à "L'avventura" (o seu filme seguinte), com o predomínio do espaço - na sua infinitude avassaladora - sobre o tempo - linearmente disposto, no caso, realisticamente estendido; com uma certa predilecção pelos rostos mudos, os gestos pequenos - talvez demasiado sufocados nos primeiros filmes de De Sica, por exemplo, pela carga melodramatizante da narrativa. Mas interessa pouco encontrar "lugar" para este filme na história do cinema, na realidade, é bom preservá-lo nesse lugar sempre algo difuso que é o cinema de Antonioni.

Aqui, temos então Aldo, um homem simples de coração destroçado - a mulher que ama quer terminar com a sua história e ele está só e perdido... no espaço. Não sabe para onde ir e o que fazer. E o filme, com avanços e recuos, vai trançando o caminho deste homem, que é pai, que leva a sua filha, para não sabe bem onde. É um caminho induzido pela fuga a um nome, que lhe lembra tempos de felicidade, uma casa onde se sentia bem: Irma, a personagem de Alida Valli, a mulher que não o queria magoar, mas que teve de o deixar para ir viver com outro homem. A traição não é censurada por Antonioni, nem mesmo por Aldo, que só quer andar para à frente, depois parar, andar aos círculos e voltar a andar em frente, como que procurando distrair o regresso desse nome que lhe sai da boca, entre destinos, como um suspiro: Irma.

É um amor profundo este e, por isso, a história de "Il grido" é muito triste: o seu preto-e-branco granítico - onde já se entrevê a experiência revolucionária de "L'avventura" -, muito liso e muito duro, não esconde que esse jeito de amar nem sempre tem o desfecho desejado pelo espectador dos happy endings de Hollywood. O amor de morte, nada grandiloquente, nada shakespereano, também é possível entre casais comuns que não sabem fazer poesia, que apenas dominam a arte de sobreviver num mundo onde a solidão rima com o vazio da paisagem.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Landscape Suicide (1987) de James Benning


Há uma tese nas profundezas de cada filme de Benning que se sente como uma picada de uma agulha. E no caso de "Landscape Suicide" essa é uma picada que vai directa à espinha, com a defesa da hipótese segundo a qual o homem esquece o que a paisagem não cessa de lembrar. Benning aponta a câmara para o espaço onde, mais perto ou mais longe, crimes hediondos foram perpetrados por mentes perturbadas de pessoas feitas da mesma carne que todas as outras.

Numa palavra, podemos dizer que Benning usa a sua câmara para inquirir “de frente”, em quadros vivos, as paisagens do interior americano, cuja beleza deslumbrante foi interrompida pelas notícias dos homicídios perpetrados pela jovem Bernadette Potti e pelo infame psicopata Ed Gein. Benning filma a paisagem com a mesma desafectação, o mesmo chocante e frio detachment, com que filma os autores desses actos bárbaros, que são interpretados por dois actores de rosto anónimo com uma "naturalidade" desarmante - a verdadeira antítese da típica reconstituição jornalística, seca e directa. Só osso.

Tanto Gein como Potti são minuciosos nos relatos que prestam à polícia, pelo menos, até chegarem ao momento em que tiveram de lidar com os seus actos - tido por acidental no primeiro caso e "inexplicavelmente" voluntário no segundo. Ora, estes "lapsos de memória", este poder que assiste a estes homicidas é o que mais impressiona no filme de Benning, ele que há mais de quarenta anos se questiona sobre o alcance, a extensão, a geografia... da memória humana. O que os assassinos esquecem a imagem do local (mental ou não) faz reaparecer - muitas vezes os seus relatos partem de uma descrição pormenorizada de onde estavam e por onde foram... - como se a paisagem tivesse ela própria um reservatório de memória próprio, que faz lembrar aqueles que esquecem ou querem esquecer.

Como a paisagem não sabe esquecer, a ela acabam por confluir traumas e fantasmas do passado, que reincidem como um pesadelo recorrente. (Como diz Deleuze ninguém deseja algo, mas uma multiplicidade de coisas, por exemplo, uma mulher, mas também a paisagem que a envolve. Logo, pergunto-me se Potti e Ed Gein não terão tornado suas cúmplices, involuntariamente, as paisagens onde mataram; parte "colaborante", "co-autora", do horror.)

A câmara de Benning disseca, autopsia, cada canto da comunidade afligida pelos crimes - que tenta esquecer - como o polícia que inquire o criminoso - que tenta lembrar. Este método, bem evidenciado em "Landscape Suicide", verdadeiro "pesadelo à Benning", aparece-nos, esventrado - como o veado das imagens finais -, com uma claridade desarmante até para o espírito mais opaco: poder esquecer é uma prerrogativa humana que a natureza, várias vezes, remete para o "fora-de-campo" como um castigo sem fim e inescapável.

Cross of Iron (1977) de Sam Peckinpah


Peckinpah definitivamente não é um homem fácil. "Cross of Iron" também não é nada fácil: filme sobre a queda da Alemanha frente aos inimigos russos, sendo que os "heróis do filme" são o batalhão alemão mais carniceiro e "sem lei" de todo o exército. Coburn diz que odeia a sua farda e todos os seus superiores, que fazem política enquanto homens, nalguns casos, bons homens são levados pelos ares no campo de batalha.

Peckinpah também odeia a guerra e, por isso, pôs a câmara onde nenhum americano se atreveu a pôr: mesmo ali, na fronteira entre a Rússia comunista e a Alemanha nazi. O espectador que se cuide. Mas mais: Peckinpah não abdica das contradições ultrajantes do seu cinema. Ele leva-as, na realidade, a um novo extremo. Em território inimigo - tanto de um lado como do outro, "entre patriotismos anti-americanos" -, Peckinpah dá a si mesmo permissão para continuar a gostar de homens de barba rija, o seu companheirismo férreo e indestrutível, tanto quanto detesta a frivolidade e sentimentalismo femininos - a certa altura, o capitão Stransky diz qualquer coisas como "nós gostamos de uma boa mulher, mas, convenhamos, os homens entendem-se melhor sem elas". Isto poderia ser confundido com machismo puro e duro, mas não é isso, quer dizer, não é só isso. Desde logo, o capitão Stransky disserta sobre a superioridade dos homens a um tenente, que se descuidara e denunciara a sua homossexualidade. Stransky não diz o que diz para seduzir o seu subordinado, mas precisamente para o levar à confissão de que é, de facto, um miserável de um homossexual.

Aquí entra a homofobia peckinpahniana: ele gosta das mulheres como "boa carne", mas tem pouca ou nenhuma paciência para as suas conversas da chacha, contudo, quem as pretira à companhia, aquele tipo de companhia..., masculina, será, também para ele, um ser desprezível. O tenente do filme é, para além de levemente caracterizado de pederasta (veja-se o interesse pelo cabo alemão com carinha e corpo de criança), um cobarde em acção; aquele que, uma vez nas mãos do seu superior interesseiro, aceita mentir e, pior, aceita disparar contra compatriotas inocentes ("bons nazis"?), que não querem mentir como ele... O seu corpo é (quase que justificadamente) dilacerado por balas e atravessado por facadas de ódio irracional, uma vingança pela sua conduta desviante e inaceitável dirigida aos seus companheiros de armas.

A censura que Peckinpah faz à homossexualidade deste fraco tenente raia perigosamente uma assimilação ideológica do objecto retratado, mas não nos podemos alhear do seguinte: acima do militar gay, está Stransky a manipular os cordéis, visando a apetecida "cross of iron" que justifique o seu estatuto congenitamente superior (prova última da sua superioridade rácica... mais: prova última do sentido muito justo do projecto nazi), servindo-se assim, numa muito mesquinha chantagem, do "segredo sujo" do subalterno. Ele está acima na hierarquia, mas, não temos dúvidas, moralmente, Peckinpah põem-no na lama - a humilhação final de Stransky, a derradeira destruição da sua reputação de nobre soldado aristocrata, de sangue azul, é capaz de ser mais brutal que a morte sangrenta e sem piedade do tenente homossexual.

Mas, por outro lado, a ligação que Peckinpah estabelece entre a homossexualidade e a perversidade nazi não é novidade nenhuma. Pode-se mesmo dizer que Rossellini vai mais longe na sua trilogia da guerra, sobretudo, em "Roma, Cidade Aberta" e "Alemanha, Ano Zero". Se no primeiro, a homossexualidade dos soldados nazis é revelada como traço da sua natureza depravada e sinistra; no segundo, o rosto mais nojento do nazismo, por entre os destroços, cabe na imagem do herr professor pedófilo de Edmund, o principal responsável por toda a espiral suicidária e demencial do filme. Peckinpah faz isto, mas mostra o outro lado, não para equilibrar, para ser "razoável", mas para dizer, em uníssono com o protagonista Coburn, que odeia o homossexual como o hetero snobe que faz dele seu fantoche para ganhar uma medalha de honra e coragem, dois traços que nunca caberão no seu carácter.

Mas a relação com a figura feminina também não se "descomplica" em "Cross of Iron". Sabemos que Peckinpah "gosta", e o gostar aqui merece toda a sua conotação moralmente dúbia (vide "Straw Dogs"), de filmar violações. Sabemos também que Peckinpah não sacraliza minimamente o sexo feminino, treslendo em toda a linha os velhos ensinamentos do western clássico. É que o realizador de "The Wild Bunch", "The Ballad of Cable Hogue" e "Bring Me the Head of Alfredo Garcia" não se coíbe de filmar uma mulher a ser espancada sem aparente razão. Machista? Sim, Peckinpah pode ser acusado de ser machista. Mas, vejamos ao mesmo tempo, onde já se viu um machista ter genuíno medo de mulheres? De facto, o machismo de Peckinpah existe até ao ponto em que esbarra com a potência escondida do chamado "sexo fraco", um limite que as suas personagens animalescas e viris muitas vezes não chegam a reparar: a mulher, anjo luminoso, aparentemente fraco e inocente, é capaz, a qualquer momento, de libertar toda uma potência escondida e dirigi-la aos seus abusadores. Quer dizer, o "machismo de Peckinpah" (gosto em violar mulheres) bate de frente muitas vezes contra a "misógina de Peckinpah" (receio de, em contrapartida, ser violado por elas...) - nada de psicologicamente estranho, mas, para o caso, algo cinematograficamente relevante.

Veja-se a sequência em que o pelotão da personagem de Coburn se depara com um grupo de mulheres ou totalmente despidas ou, para confundir, envergando a farda do inimigo, as cores do exército soviético. O dilema atinge alguns dos militares alemães, a começar por Coburn, que cedo parece perceber que estará a lidar com o "espécime mais perigoso deles todos". O que acontece a seguir resume bem toda a complexidade moral do cinema de Peckinpah: o mais novo dos soldados, ainda virgem, guarda com o mais nazi dos soldados, um SS acabado de integrar o pelotão de Coburn, para desgosto deste, o grupo de mulheres, que - como veremos - preparam secretamente, com os seus meios "misteriosos", o "contra-ataque". Ambos os soldados germânicos acabam seduzidos pelas prisioneiras, sendo de seguida como que encaminhados para um destino trágico, mas moralmente diferenciado: o alemão virgem, inebriado pela beleza da sua prisioneira, leva uma facada nas costas, mas, antes de morrer, pede ao sargento para perdoar a pobre rapariga - Peckinpah sabe, aqui, compreender a compreensão do virgem, inocente, nazi face à situação daquelas mulheres; ao mesmo tempo, o alemão do Partido, tipicamente caracterizado (muito louro, de bigode escovado até ao último pêlo, demasiado composto e arranjado), é mordido no seu sexo, isto é, a jovem cativa arranca à dentada a virilidade do ser considerado desprezível até pelos seus companheiros de armas. Neste caso, Coburn decide-se por entregar o que resta dele - pouco, segundo Peckinpah - às mulheres "famintas" de vingança, que rapidamente investem a sua ira no seu corpo castrado - desmasculinizado, logo, peckinpahnianamente inútil. De novo, destino bem pior que o reservado ao homossexual.

Sendo assim, parece que Peckinpah adora e odeia, ou "adora odiar" ou "odeia adorar", o sexo oposto. Respeita-o mas só na medida em que tem necessidade dele - ele "define-o" nos seus desejos - e, ao mesmo tempo, não sabe bem ao certo do que ele é capaz - ele "define-o" nos seus medos. Provavelmente, partilhará sentimento semelhante pelo "inimigo de guerra". Peckinpah fez "Cross of Iron", mas não o fez para "humanizar" os alemães. Contudo, os seus heróis são alemãs e, quer queiram, quer não, - como também dizem, repetidas vezes, as várias personagens - são cúmplices da monstruosidade cometida. Contudo? Pois, contudo são isto, mas contudo também são o seu contrário: homens que não se mostram indiferentes aos horrores da guerra e que lutam já não para sobreviver mas para restaurar a dignidade da já destroçada nação alemã (lutar pelos "bons nazis", como diz o coronel interpretado por James Mason). Ainda assim, a crueldade persiste entre alguns desonrosos (os "maus nazis"), que mandam matar para defender interesses particulares, ou que matam cegamente contra qualquer um que vista a farda inimiga.

Coburn vinga-se desses "maus nazis" quando dispara contra o oficial homossexual e o aristocrata interesseiro, mas quando mata friamente o inimigo bélico, fá-lo enquanto revê mentalmente a imagem de uma criança russa que ele salvou, mas que acabou chacinada a sangue-frio por militares russos - ei, e que ideia é essa de porem mulheres na linha de combate? Peckinpah é severo com os russos, porque, vamos lá ver, também não vai com a cara dos comunistas. Odeia nazis e odeia comunistas. Odeia homossexuais e odeia homofóbicos (e) machistas. Odeia mulheres e odeia homens que odeiam mulheres e compreende homens que compreendem as mulheres. E odeia homens que, compreendendo as mulheres, se deixem enredar nas suas falinhas mansas. Receia a superioridade feminina e odeia a superioridade, "de raça" ou "de classe", dos homens armados, mas também odeia a igualdade "sem divisórias" entre homens e mulheres e crianças no campo de batalha, entre homens e homens e crianças na intimidade da cama. Mas, por outro lado - há sempre um "por outro lado" aqui -, filma brilhantemente, com comovente honestidade, homens a amarem outros homens ou a "perderem-se" na toda-poderosa beleza feminina.

"Cross of Iron" move, deste modo, o campo complexo e, por vezes, contraditório das relações humanas em Peckinpah para o espaço absurdo da guerra, espaço esse onde se morre por amor, fidelidade, ódio e traição - às vezes, tudo isto ao mesmo tempo! Espaço onde o bailado é mortal - e como choca a montagem de Peckinpah, suspensa e poética, com a dureza de tudo! - e onde a grandiosidade do humano se faz heróica e tragicamente nas fronteiras com o que há de mais bárbaro. Assim é na guerra "militar" dos nazis contra os comunistas como na perpétua guerra "civil" que nos ocupa os dias. Estrondosa obra-prima.

Tinha 40 anos quando se suicidou

"Lilith" (1964) de Robert Rossen

"Les hautes solitudes" (1974) de Philippe Garrel

domingo, 1 de janeiro de 2012

Torneio interblogues: as mais recentes equipas de sonho

Equipa de Ricardo Lisboa, blogue Breath Away

Equipa de Hoplita, blogue A Sombra do Elefante

Equipa de João Gonçalves, blogue Modern Times

Equipa de João Palhares, blogue Cine Resort

Travam-se as "razões das escolhas" aqui, em comentário.

e...

(não se esqueçam)

Equipa de Luís Mendonça, blogue CINEdrio

Mais três equipas e sorteamos os confrontos directos, que abrirão o primeiro torneio interblogues a nível nacional e, muito provavelmente, a nível INTERNACIONAL (ganhará quem vencer três jogos).

Blogues de todo o mundo, juntai-vos!

(Um aviso: epá, por favor, não venham com tácticas muito complicadas, que eu não sou nenhum Freitas Lobo!)

Sobre o espírito RTP, o maestro...


... António Vitorino d'Almeida, em entrevista ao Correio da Manhã (publicada no seu "guia televisivo" desta semana), disse:

Qual a sua opinião sobre a privatização de um dos canais da RTP?
Estou-me marimbando! A RTP é péssima, não presta, minimamente, serviço público. Não me afecta nada que seja gerida por um gajo qualquer. Afectava-me se houvesse um verdadeiro serviço público. Que eu saiba, era a RTP e não a RTP2 - a menos que me tenham aldrabado - que devia fazê-lo...tanto o canal um como o dois.

Não partilha o argumento de que um canal de serviço público é insuficiente?
Não pode piorar mais! Podemos sempre dizer que poriam lá outra 'Casa dos Segredos', mas o que é que a RTP lá tem? Coisas parecidas... segredos mais escondidos, mas o espírito é o mesmo.

É caso para dizer: "Bravo, maestro!"

(E também é caso para se fazer a pergunta: já conversou com a sua filhota?)

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